No
décimo aniversário da fundação da Pastoral da Criança, a Dra, Zilda Arns Neuman
redigiu uma carta dirigida aos líderes e coordenadores da Pastoral. Hoje, ao
comemorarmos nosso Jubileu de Prata, publicamos essas palavras, reafirmando
nossa missão de “instrumento de paz e justiça contra a fome e a miséria”, como
bem definiu a nossa fundadora, e desejando a todos: Paz e bem!
Rita
Jardim Carnevalli – Coordenadora Arquidiocesana
Carta Dra. Zilda Arns
Neuman:
Querida Líder
Querida Coordenadora
Paz e Bem!
Hoje, escrevo a você com o mais profundo
sentimento: gostaria que o seu coração me ouvisse e me respondesse. Trata-se de
um pouco da história do começo da Pastoral da Criança, há 10 anos. Quando recebi o convite de trabalhar com a
Igreja para salvar a vida de crianças pobres e, com isso, ajudar a dar novo
rumo a meu país, senti dentro de mim a maior ternura e vontade que alguém pode
sentir. Cheguei em casa, chamei meus 5 filhos, o mais velho tinha 20 anos e a
mais nova 10, e lhes expliquei o que seria, e que isso implicaria viagens; se
eles me autorizavam a assumir essa missão. Isto significaria que eles teriam
que assumir com responsabilidade suas vidas, seus estudos, sem a minha presença
constante (o pai já havia falecido há 7 anos).
Assim, em setembro de 1983, começou o trabalho
em Florestópólis, município da Arquidiocese de Londrina/Paraná, onde o
Arcebispo Dom Geraldo Majella Agnelo e eu começamos a primeira experiência com
famílias, a maioria bóias-frias, que trabalhavam, em épocas, com
cana-de-açúcar, em outras, com café e algodão. Em abril de 1984, fui convidada
por Dom Luciano Mendes de Almeida (que na época era Secretário-Geral da CNBB e
agora presidente) a apresentar essa experiência na Assembleia dos Bispos em
Itaici. Falei com entusiasmo do trabalho das líderes com as famílias vizinhas
e, quando acabei, Dom Francisco
Austregésilo,
Bispo de Afogados da Ingazeira, de Pernambuco, falou alto no microfone e disse
que era essa a melhor coisa que levava de Itaici para o sertão sofrido do
Nordeste. Mas me perguntou: de que jeito aquelas mães desnutridas iriam
amamentar os seus filhos? Tinha ele um projeto que comprava leite para as
crianças, ao que lhe respondi que esse deveria ser dado às mães, a fim de terem
mais leite de peito para seus filhos, e não às crianças, pois o leite da mãe
era de insubstituível valor. Começava, então, a se desenhar a expansão da
Pastoral da Criança, que foi um desafio constante; muitas alegrias, uma riqueza
de conhecimentos, de amizade, mas, às vezes, parecia-me que o próprio diabo
queria atrapalhar a caminhada pela Vida Plena.
Um dia, depois de uma longa viagem, as
atitudes de algumas pessoas me abateram e “pensei com os meus botões”: por que
não querem que essa Pastoral salve a vida das crianças? Por que não reconhecem
que ela organiza comunidades e confia nelas, para que distribua seus próprios
dons, tudo o que sabe e possa avaliar o seu trabalho, sendo que Jesus nos
ensinou isso na partilha dos pães e peixes? Cheguei até a pensar que talvez
fosse porque eu não era morena e era médica. Por isso rejeitavam a missão que
Deus me havia dado. Você também já teve momentos desses? Estava nesse momento chegando em São Luís do
Maranhão e Frei Eurico Loher, padre franciscano, e Irmã Speciosa, capuchinha,
levaram-me a visitar a Vila Conceição, da favela do Coroadinho, a primeira
experiência naquela cidade. Eram casinhas de barro, faltava água, miséria
absoluta. Quando cheguei na capela, as líderes e suas famílias estavam me
esperando felizes e jogavam pétalas de flores e me beijavam com todo o carinho
que até hoje sinto os seus beijos no meu pescoço, pois a desnutrição de
gerações as havia deixado bem mais baixas. Olhei as crianças, lindas, sadias,
alegres e ouvi os milagres que contavam com as gestantes que davam à luz a
crianças fortes, o soro caseiro salvando vidas, o leite de peito e o dia do
peso, o grande dia mensal da celebração da vida na comunidade.
Falei então com Jesus e disse a Ele: Você está
vendo? Não é esse o caminho que Você escolheu para salvar as crianças e as
famílias do Brasil? Você viu a alma dessas mulheres, que mesmo não tendo o que
comer, repartem o que têm, até o tempo que não têm para salvar vidas para
sempre, unir famílias, dar esperanças, iluminar o caminho do futuro?
E a semente da Pastoral da Criança foi se
estendendo, de forma lenta e sempre; a cada mês, em mais comunidades essa
árvore crescia. Apesar de brotar tão bem, regada por sol e chuva, o diabo
continuava atentando e perguntava irônico: como implantar a Pastoral nesses
bolsões de miséria, quando nelas você não encontrava líderes da Igreja, e que
muitas vezes sobrevivem da prostituição do corpo ou da alma, em nome da
miséria? Perguntei então a Jesus: Você
nos ensinou que veio para que Todos tenham vida, sem restrição. O sangue e o
suor esparramado por esses coordenadores e líderes, em nome da caridade, não
vale mais? Elas por acaso não são as prediletas de Deus, as santas dos dias de
hoje, porque doam suas vidas, o maior mandamento que Você, Jesus, nos deu?
Lá adiante, outro diabinho perguntava: escute,
isso que a Igreja está fazendo não é dever do governo, por que ela está se
metendo nisso? Perguntava eu então a Jesus: se as mães e as famílias aprendem
mais sobre como educar as suas crianças, cuidar da saúde, da fé, não é
importante para libertá-las da miséria, da fome e da pobreza? Não poderá o
governo cuidar melhor da saúde e da educação se a família aprender a prevenir
doenças e a comunidade se unir para reivindicar as ações necessárias para ter
uma vida digna?
Na verdade, querida amiga, foi a mística
cristã que você traz no seu coração que faz da Pastoral da Criança o que hoje
ela é; que todos respeitem e venerem a você, que é o instrumento da paz, da
justiça, contra a fome e a miséria.
Gostaria de contar ainda a você que foi muito
importante para mim e para toda a Pastoral da Criança o apoio do Bom Pastor,
Dom Geraldo Majella Agnelo; acompanhou ele com tanto carinho, durante 8 anos a
caminhada, seguido depois por Dom Alfredo Novak durante um ano e, agora, Dom
Aloysio Penna, que valoriza tanto a família, a saúde e a educação como
instrumentos de mudança em nosso país.
Por hoje termino, pedindo a Deus que abençoe
muito a você e a toda sua família e a comunidade. Que você e nós todos tenhamos
a graça da paz e da perseverança, pois o país vai mudar a partir do nosso
esforço em favor da vida.
Parabéns a você e muito obrigada por tudo o
que faz. Coragem!
Com carinho, abraço a Você e a toda a sua
família.
Zilda Arns